top of page
12805777_550557958445309_4924926765809740433_n.jpg
capa.jpg

Pesquisa desenvolvida na residência artística Paisagens Midiáticas entre outubro de 2015 e fevereiro de 2016, ambos na Casa de Cultura Digital (Fortaleza-CE) e organizados pelo Minimídias Labnômade.  

O projeto trabalhou com a curadoria de 25 ligações telefônicas selecionadas de 17 filmes nacionais (1913-1980), em um total de 38 cenas. Essas cenas foram geolocalizadas em 17 orelhões na região do Centro, da Praia de Iracema e do Náutico, na cidade de Fortaleza, compondo um percurso de 5,6km que pôde ser realizado individualmente através de bicicleta ou através de uma visita cicloguiada oferecida pelo artista. Além disso, foi desenvolvida e exposta uma instalação audiovisual.

O esforço foi da pesquisa foi constituir uma experiência com a arqueologia das relações entre o telefone e o cinema, expondo nuances da afinidade entre os setores da telecomunicação e problematizando as camadas de relacionabilidade entre as interfaces midiáticas, bem como entre essas e o espaço urbano na contemporaneidade, a partir de uma articulação entre performatividade arquivística e mobilidade urbana com mídias locativas.


O lugar da paisagem escolhido para ancorar a materialidade dessa experiência espacial contemporânea foi o orelhão, ou telefone público, inventado (seu design) na década de 1970 e atualmente em processo de decadência, abandono e/ou extinção, culpando-se disso, comumente, a atual acessibilidade e popularidade das tecnologias móveis e inteligentes.

Passados alguns anos da realização do projeto, optou-se aqui por apresentar a pesquisa no formato de uma página web.

Cinefone.jpg
Cinefone2.jpg
Cinefone8.jpg
Cinefone7.jpg

Em um trecho das primeiras páginas do clássico livro de estudos de mídia Gramofone, Filme e Typewritter (1986), Friedrich Kittler conjuga no futuro e no presente (um pouco anterior ao aparecimento dos celulares e da disseminação dos computadores) a ideia de um “enganchamento” das pessoas a um canal de informação que pode ser usado como televisão, rádio, telefone, correio, cinema e texto, devido a uma convergência padronizada por frequências de transmissão e formato bit transportados através de cabos de fibra ótica.

"A digitalização geral dos canais e das informações apaga a diferença entre os meios individuais. Som e imagem, voz e texto são reduzidos a efeitos superficiais, conhecidos pelos consumidores como interface. Sentido e os sentidos se tornam mera fachada. Seu glamour produzido pelos meios sobreviverá por um período transitório como subproduto de programas estratégicos. Dentro dos próprios computadores, tudo se transforma em números: quantidades sem imagem, som ou voz. E uma vez que as redes de fibra ótica transformam fluxos de dados antes distintos em uma série padronizada de números digitalizados, qualquer meio pode ser traduzido para outro. Com números, tudo é possível. Modulação, transformação, sincronização; atraso, armazenamento, transposição; embaralhamento, varredura, mapeamento - uma conexão total dos meios em uma base digital apagará o próprio conceito de meio" (KITTLER, 1986).


Essa convergência das mídias no contexto da contemporaneidade não inaugura, todavia, as afinidades entre as mídias e uma certa complicação dessas em seus processos de desenvolvimento e transformação, e melhor, na própria constituição da experiência de temporalidade. Para o caso específico dessa pesquisa, coube pensar um pouco sobre a coimplicação do cinema e do telefone nos seus desdobramentos na constituição da experiência moderna.


Gunning (2004) afirma que não dá para se entender completamente a relação do cinema com a tecnologia sem olhar teoricamente e sincronicamente para o sistema de tecnologias que emergiram no século XIX, compondo o terreno do que se constitui a experiência moderna.


“Eu afirmo que o cinema nos ensina sobre a tecnologia não só através do exame de sua própria mecânica, modos de produção, e meios de expressão, mas através da sua representação de, e interação com, outras tecnologias” (GUNNING, 2004)

O cinema, estabelece com outras tecnologias, nessa perspectiva, relações de afinidade que restam não só em similaridades ou dependências mútuas sobre a engenharia moderna, mas que envolvem práticas que se retroalimentam, influenciando novos modos de representação na linguagem cinematográfica e contribuindo na negociação de novas relações entre tempo e espaço. “Em outras palavras, uma tecnologia não só interage com outras tecnologias, mas transforma a prática social e a experiência humana” (GUNNING, 2004).

 

E é o encontro desses sistemas interativos de tecnologias que criam, para o autor, o terreno complexo que se pode chamar de modernidade, envolvendo novos modos de experiência cultural e histórica e de categorias básicas da experiência como espaço, tempo e causalidade. Para Gunning, o cinema demonstra, acima de tudo, afinidade com a experiência de modernidade criada pela interação entre tecnologias, exercendo sua habilidade de sintetizar e representar o movimento e novas relações temporais e espaciais através da edição de imagens.


Olssom (2004), mais especificamente, estuda a relação entre os primórdios do
cinema, ainda mudo, e o telefone, apontando uma abundância de cenas de uso de telefone no cinema mundial.

 

Com Cinefagia Ciclofonática não tive como afirmar a dimensão dessa presença no cinema nacional, mas selecionei dois filmes do período mudo, um da década de 10 (O Telefone do Vovô, de 1913) e outro da década de 20 (A Filha do Advogado, de 1926). A presença de cenas de telefone em filmes mudos é contextualizada por Olsson: “o telefone, um meio puramente sonoro, é listado por outro meio, o filme, que, incapaz diegeticamente de absorver o som propriamente, é consequentemente dependente de sugestões visuais para corroborar a essência das conversas e os sinais telefônicos de alerta” (OLSSON, 2004).

O autor, dessa forma, estabelece relações entre desenvolvimentos na linguagem cinematográfica, especificamente a montagem paralela e split-screen, e o uso de telefones no cinema, pela necessidade de conectar em uma imagem espaços diferentes em um mesmo tempo. Associar diferentes meios da modernidade, como o telefone, inspiraram padrões de representação cinematográfica. “Os cineastas roubaram, tomaram emprestado e fizeram pastiche com dispositivos, brincando com fórmulas e interfaces em um processo contínuo de tentativa”. (OLSSOM, 2004)

Quanto a esse nódulo curatorial, cabe falar que o telefone também é apontado por Gunning (2004) como um mote, no cinema, para se lançar um olhar sombrio sobre os sistemas da modernidade. Em vez de servir como uma mera ligação, o telefone também é a porta de abertura para um sistema complexo em que diferentes aspectos e procedimentos da tecnologia interagem a favor de um sistema corrupto e inescrupuloso.

Essas informações e dados bibliográficos acabaram influenciando na curadoria das cenas em relação ao espaço da cidade. Os filmes datados de 1913 e 1926 ficaram, por exemplo, no entorno do Museu do Ceará e da Praça dos Leões, locais históricos e dos mais antigos de Fortaleza. Um outro filme policial que envolvia perseguição a casas de ficou instalado diante de um prédio que na década de 1990 era uma casa de jogos. De certa forma, sendo assim, os filmes passam a dialogar com a memória do centro da cidade.

A filha do advogado (1926)

Direção: Jota Soares

Produtora: Aurora Filme

Os óculos da vóvó (1913)

Direção: Francisco Santos

Produtora: Guarany Fábrica de Fitas Cinematográficas

Alô, Alô Carnaval (1936)

Direção: Adhemar Gonzaga

Produtora: Cinédia

Desenho por Xeyletix

Onde estás felicidade (1939)

Direção: Mesquitinha

Produtora: Cinédia

Rio, Zona Norte (1957)

Direção: Nelson Pereira dos Santos

Produtora: Nelson Pereira dos Santos Produções Cinematográficas

Absolutamente Certo (1957)

Direção: Anselmo Duarte

Produtora: Cinedistri

Bahia de Todos os Santos (1960)

Direção: Trigueirinho Neto

Produtora: Produções Cinematográficas Trigueirinho Neto

Desenho por Guto Rafael

Uma das análises que se destacam no trabalho de pesquisa bibliográfica sobre o tema é a de Ronell (1988). A filósofa faz um estudo da relação entre tecnologia e o totalitarismo fascista a partir do telefone. Estabelecendo conexões onde antes havia pouca ou nenhuma relação, globalizando e unificando, o Estado totalitário se interessa, para a autora, em tecer uma rede de conectibilidade, “de onde uma flor mortal de unidade pode crescer sob o céu da vigilância constante” (RONELL, 1988).

 

É interessante, nesse sentido, a construção metafórica que Ronell faz do fio do telefone como o cordão umbilical que nos conecta à barriga paternal do Estado. As cenas escolhidas para esse nódulo curatorial, portanto, atestam as relações entre vigilância e totalitarismo, trazendo um pouco o clima tenso que vivia o Brasil na década de 1970. Nas cenas escolhidas, telefones públicos são usados por informantes para dar localizações e ligações são feitas para denunciar contraventores de um regime torturador.

Essas cenas foram geolocalizadas de frente para um forte da região central da cidade, o Comando da 10º Região Militar. Anos depois do projeto, em 2022, esse foi o local de acampamento dos golpistas. Tal nódulo buscaram provocar, em 2016, a seguinte questão: como seriam essas cenas se essa ditadura fosse hoje, com as tecnologias presentes? As mídias locativas que fazem do espaço geográfico contemporâneo o quadro de um trabalho artístico também apontam uma organização de acessibilidade às tecnologias marcada pela geolocalização dos seus usuários, trazendo uma capacidade sem precedentes de marcar a posição de um sujeito no mapa e o conectar aos depósitos de dados que o Estado facilmente acessa. O cordão umbilical não é mais só um fio.

A introdução de uma jogabilidade e de distorções nessas tecnologias são pensadas como respostas importantes à homogeneização, em articulações entre memória heterogeneidade e multiplicidade de dados contrasensores no espaço.

Copacabana Mon Amour (1970)

Direção: Rogério Sganzerla

Produtora: Belair

O Bom Burguês (1983)

Direção: Oswaldo Caldeira

Produtora: Encontro Produções Cinematográficas

A Mulher de Todos (1969)

Direção: Rogério Sganzerla

Produtora: Servicine

Cordão de Ouro (1977)

Direção: Antonio Carlos da Fontoura

Produtora: Lanterna Mágica; Alter Filmes; Embrafilme

Entre discagem em botões analógicos e cliques em telas touch screen, entre um cordão umbilical ou nuvens de vigilância e dominação, o telefone também é associado, por Ronell, a um outro aspecto importante da manutenção de um estado totalitário: o patriarcalismo.


Para Ronell (1989), o telefone é, também, um objeto fálico que encontra, no ouvido da mulher objetificada pelo imaginário machista, uma satisfação erótica. O ouvido, em abordagens psicanalíticas, é uma zona erógena sobre a qual o poder patriarcal se afirmou e no cinema brasileiro se encontram, particularmente, cenas interessantes que apontam para os papéis que esse imaginário patriarcal tem estipulado para as mulheres.

Friedrich Kittler aponta que a exclusão histórica das mulheres da tecnologia e seu “simultâneo encapsulamento ou hibridização com a máquina” (como operadoras de telefone, datilógrafas ou donas de casa automatizadas) na sociedade dominada por homens é o suficiente para se levantar dúvidas sobre as verdadeiras bênçãos que as tecnologias interativas trarão as mulheres, “isso para nem falar nada sobre a prometida “zona de gênero livre que seria o ciberespaço”.

 

Essa afirmação ganha uma ilustração muito interessante com um dos filmes selecionados, O Inseto do Amor (1980), em uma de suas cenas onde uma operadora de telefone se masturba com os cabos de telefonia. Kittler, estabelecendo com ironia a relação entre tecnologia, descorporificação e psicanálise, aponta ainda que a psicanálise tem mantido uma lista de objetos parciais que podem ser separados do corpo, excitando desejos que estão a priori da diferenciação sexual: seios, boca e fezes. Lacan adicionou, conforme o autor, dois objetos parciais: a voz e o olhar. Isso ocorre, para Kittler, ironicamente, em uma era de mídias, onde apenas o cinema pode descorporificar o olhar, e apenas o telefone é capaz de transmitir a voz descorporificada.

 

A mulher na pornochanchada (e certamente nas cenas dos filmes selecionados), é objetificada e reduzida aos papéis (definidos por homens) ou de pureza, ou de “vadia” ou de ostentação, formando um conjunto de exemplos interessantes para serem analisados tendo como base tais citações. São cenas que buscam ativamente um prazer descorporificado sobre o telefone e que, quando constroem uma imagem que contém mulher e modernidade em quadro, o fazem de maneira que a mulher ainda se encontra enquanto objeto que deve atuar a favor do phallus. Essas cenas foram geolocalizadas em orelhões da Praia de Iracema, uma região historicamente associada ao turismo sexual e a prostituição em Fortaleza

telephallus.jpg

O Inseto do Amor (1980)

Direção: Fauzi Mansur

Desenho por Érica Rodrigues

A Virgem (1973)

Direção: Dionizio de Azevedo

Produtora: Profilbrás Cinematográfica

Na violência do sexo (1976)

Direção: Antonio Bonacin Tomé

Pintando o sexo (1977)

Direção: Dionizio de Azevedo

Inquietações de uma mulher casada (1978)

Direção: Alberto Salvá e Denise Bandeira

Por fim, selecionou-se um grupo de cenas para serem instaladas na região que possuium dos m² mais caros de Fortaleza, que contextualizam o acesso à tecnologia comocondicionado ao poder econômico, seja de um indivíduo ou de uma região da cidade.

Os filmes selecionados para esse nódulo datam de 1958 a 1970. Nesse período o Brasilpossuía pouco mais de 1 milhão de linhas telefônicas, com uma população de 70 milhões depessoas. Eram cerca de 900 concessionárias, uma grande variedade de equipamentosutilizados para operar o sistema de telefonia, gerando incompatibilidades entreequipamentos de diferentes empresas, resultando em um grande número de chamadasinterrompidas ou não contempladas, o que acarretava um maior custo econômico e socialpara os usuários do sistema. (TEIXEIRA E TOYOSHIMA, 2003).

É na década de 1970 que vão surgir os chamados orelhões, resultado de um projeto dedesign de Ching Ming Silveira. Nesse período o número de telefones públicos praticamentedobra, tornando um pouco mais acessível a comunicação a longa distância. É até esseperíodo que a presente pesquisa se estende, até a década em que os orelhões começaram ase popularizar.

Marcelo Zona Sul (1970)

Direção: Xavier de Oliveira

Adultério a brasileira (1969)

Direção: Pedro Carlos Rovai

Cinefone2.jpg

Cala a boca, Etelvina (1959)

Direção: Eurípedes Ramos

A mulher de todos (1960)

Direção: Rogério Sganzerla

Cinefone8.jpg

REFERÊNCIAS

BAIO, Cesar. Máquinas de imagem: arte, tecnologia e pós-virtualidade. São Paulo. Annablume. 2015


BISHOP, Claire. Digital Divide: Contemporary Art and New Media. Artforum September.2012.


___________. Installation Art. 2005.


ERNST, Wolfgang. Media Archaeography: Method and Machine versus History and Narrative of Media. In: Media Archaeology. Approaches, Applications and Implications, edited by Erkki Huhtamo and Jussi Parikka. 239-255. Berkeley, CA: University of California Press, 2011.


FOSTER, Hal. An Archival Impulse. In: October, Vol. 110 (Autumn), pp. 3-22. 2004


HUHTAMO, Erkki. Pockets of Plenty: An Archaeology of Mobile Media. In The Mobile Audience: Media Art and Mobile Technologies, edited by Martin Rieser, 23-38. Amsterdam/New York: Rodopi, 2011.

KITTLER, Friedrich A. (1986), Gramophone, Film, Typewriter [Grammophon, Film, Typewriter], trad. de Geoffrey Winthrop-Young e Michael Wutz, Stanford (CA), Stanford Universty Press, 1999.


KWASTEK, Katja. Aesthetics of interaction in digital Art. Cambridge. MIT Press. 2013.


OLSSON, Jan. Framing silent calls: coming to cinematographic terms with telephony. . in: Allegories of Communication: Intermedial Concerns from Cinema to the Digital. John fullerton e Jan Olsson. (Ed). John Libbey Publishing. Roma. 2004


GUNNING, Tom. Fritz Lang Calling: the telephone and the circuits of modernity. in: Allegories of Communication: Intermedial COncerns from Cinema to the Digital. John fullerton e Jan Olsson. (Ed). John Libbey Publishing. Roma. 2004


RONELL, Avital. The Telephone Book: Technology - Schizophrenia - Electric Speech, Lincoln, Nebraska: Nebraska University Press. 1988.
 

KOUROS, Panos. The public art of performative archiving in: Panos Kouros and Elpida Karaba, Archive Public. Performing Archives in Public Art. Τοpical Interpositions, Department of Architecture, University of Patras, and Cube Art Editions, Patras 2012


TEIXEIRA, Rogério de Assis; TOYOSHIMA, Silvia Harumi. A Evolução das Telecomunicações no Brasil 1950-2001: o caso da telefonia Revista Econômica do Nordeste – REN. v.34, n.1. Fortaleza: BNB, 2003. p. 150-178.


Walking Tools. [http://www.walkingtools.net/?page_id=2Kouros] Acessado em 26 de maio
de 2016.

bottom of page